Em abril deste ano – 2022 – as letras brasileiras perderam uma das maiores escritoras pertencentes à nossa literatura, a paulista Lygia Fagundes Telles.
Por esses dias, ela veio à memória… Primeira mulher brasileira a ser indicada ao prêmio Nobel de Literatura, em 2016, Lygia soube explorar as histórias que ouvia (sobre lobisomens ou outros temas de terror) e contava, a amalgamá-las numa narrativa fecunda e, ao mesmo tempo, encantadora, envolvendo o leitor pelos aspectos mais inesperados e alimentados pelo imaginário.
O escritor Caio Fernando Abreu afirmou uma vez que a escritora compunha uma literatura legítima porque ela era “basicamente uma contadora de histórias, no melhor e mais vasto significado da expressão” (ABREU, 1996, s.p.).
Assim, sua produção percorre romances, contos, crônicas e sua vastidão fez com que ela recebesse a alcunha de “grande dama da literatura brasileira” – adjetivação atribuída pelo crítico Hélio Pólvora.
No entanto, foi com a obra Ciranda de Pedra, de 1954, que a escritora alcançou a sua consagração ou, como afirmou Antonio Candido (1989), a sua “maturidade literária”. Vale ressaltar que, com o referido romance, Lygia Fagundes Telles mostrou sua capacidade de acompanhar as mudanças geopolíticas e sociais ocorridas no Brasil do pós-guerra, atentando para o lugar da mulher numa sociedade que estava passando por um processo de transformação, marcado por um contexto em que a mulher estava a ocupar, mesmo que lentamente, um lugar no mercado de trabalho.
Muito além de uma literatura supostamente engajada ou de teor social, a escrita de Lygia porta sentidos que tramam para si mesmos e desafiam o leitor para a sua interpretação. Para tanto, ela lançou mão de “imagens simbólicas, responsáveis em grande parte pela universalidade e densidade de suas tramas”, conforme salientou a professora Vera Maria Tietzmann, em uma conferência na Academia Brasileira de Letras em 2006, a convite da própria Lygia. O uso do citado recurso de imagens simbólicas é aliado a uma atuação de perquiridor que seus narradores assumem em relação à existência íntima de suas personagens, numa espécie de investigação a respeito da essência humana. Tais apontamentos podem ser confirmados pelas próprias palavras da escritora, que destacou: “O meu objetivo é a condição humana. A condição humana me apaixona muito, então eu tento me desembrulhar, desembrulhando meu próximo. Nesse ato de me desembrulhar, faço do próximo meu cúmplice, meu parceiro” (TELLES, 2012, s.p.).
Desta forma, Lygia convoca o leitor para esse desembrulhar-se, a fim de expor os dramas íntimos e familiares maculados pela aparência que se revela por meio da linguagem.
Para exemplificar, podemos citar a obra As meninas, de 1973, em que as três protagonistas manifestam posicionamentos condicionados pelo universo social a que cada uma pertence, lidando com confrontações, mudanças e explorações físicas e emocionais, fantasias, ideais, anseios sexuais, entre outros fatores.
É fato a escrita primorosa de Lygia, assegurada por Antonio Candido, que a adjetivou como “a mão de mestre que nunca falha”, afirmação feita numa carta que o crítico escrevera em 2005 para a autora. Com uma tessitura sofisticada, que transita entre o real e o imaginário, a paulista pensou a escrita literária e assumiu um compromisso coletivo: “Por que escrevo? Ah, que difícil responder a essa pergunta. Tentarei dar alguma resposta e sei que estou entrando assim numa zona imprecisa. Vaga. O escritor escreve porque tenta recompor, quem sabe? um mundo perdido. Os amores perdidos” (TELLES, 2002, p. 153). É essa escrita de recomposição e de “natureza engajada, ou seja, comprometid[a] com a nossa condição nesse escândalo de desigualdades sociais” (TELLES, 2002, p. 90), que a faz questionar: “a elite pode estar a salvo. Mas e os outros?” (TELLES, 1998, p. 18). Assim, temos uma escrita que se coloca como um ato político, como um agente a derrubar máscaras por meio da denúncia da degradação social.
Contudo, mais uma vez reforçamos que sua escrita ultrapassa o aspecto do social. A velhice, o remorso, o ciúme, o feminino, a traição, a loucura, são outros temas que perpassam sua produção literária, cujos narradores mergulham na dimensão psicológica dos personagens e, a partir de sugestões e de certo tom de mistério, sutilmente tecem conflitos interessados pelo essencial, como pode ser observado nos contos presentes em O cacto vermelho (1949) e Histórias do desencontro (1958).
É importante trazer a Lygia leitora, papel esse que colaborou para que ela se tornasse uma exímia escritora e de qualidade estética inquestionável. Assim, fizeram parte de suas leituras autores como Franz Kafka, Virginia Woolf, Tolstói, Jorge Luis Borges, Machado de Assis, Katherine Mansfield, James Joyce, para citar alguns nomes que, particularmente, foram inovadores em seu tempo por terem rompido com padrões estético-literários. Tais influências alimentaram a verve artística da escritora conhecida por narrativas de caráter subjetivista, por vezes introspectiva, com certo tom existencialista, pinceladas com uma ironia fina à la Machado.
Lygia era uma escritora inquieta e de visão aprimorada, capaz de enxergar “aquilo que reluta em mostrar-se” (PAES, 1998, p. 83) naquele ato de desembrulhar-se, já citado anteriormente, de despir-se para atingir a também já referida essência, visto que esta era a recompensa. Por isso, a função do escritor é “ser testemunha e participante deste mundo” (TELLES, 1997, p. 97), para tanto era necessário apostar tudo nas palavras, como ela mesma afirmara em uma entrevista para a revista Ícaro, em 1992. Por fim, o que se sabe é que sua escrita envolta em fascínio e estranhamento, atenta ao inesperado, a qual se desdobra e assombra, está eternizada, a envolver os leitores em emaranhados de contradições, complexidades e duplicidades inerentes à condição humana.
Leiamos Lygia!
REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. A primeira-dama da literatura. Zero Hora, 6 jan. 1996. Disponível em: http://caiofcaio.blogspot.com/2011/01/primeira-dama-da-literatura.html . Acesso em: 10 abril 2006.
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
________________. [Mão de mestre que nunca falha]. Destinatário: Lygia Fagundes Telles. São Paulo, 15 maio de 2005. 1 carta. Disponível em: https://correio.ims.com.br/carta/mao-de-mestre-que-nunca-falha/.
PAES, José Paulo. Ao encontro dos desencontros. In.: Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 5, p. 70-83, 1998.
TELLES, L. F. Eu aposto tudo nas palavras. Ícaro, Rio de Janeiro, v. 11, n. 96, p. 18-34, 1992. Entrevista concedida a Regina Echeverria.
__________. A trapezista da noite escura. In.: VASSALO, Márcio. Nos bastidores do mercado editorial: as entrevistas de maior repercussão do Jornal Lector. Belém: Cejup, 1997. p. 98-107. Entrevista concedida a Márcio Vassalo.
__________. Senhor diretor. In: TELLES, L. F. Seminário dos Ratos. 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
__________. Durante aquele estranho chá. Rio de Janeiro: Rocco , 2002.
Blogger, Andarilha na Literatura e Doutora em Letras. Colunista na Revista Entre Poetas e Poesias.


