O ato da leitura pode nos possibilitar o entendimento do mundo em que vivemos; mas, para o próprio processo de leitura, devemos portar conosco uma bagagem de percepções das coisas presentes ao nosso redor, a fim de que esta se relacione com o que é percebido na leitura da palavra. Por conseguinte, a leitura não deve ser vista apenas como um processo de decodificação da língua, mas com o identificar de algo que está além do signo linguístico e que enriquece nossa visão de mundo, levando-nos, dessa forma, a passar por experiências ainda não vividas.
Sabemos que a nossa percepção de mundo se inicia a partir da nossa infância e evolui de acordo com o nosso amadurecimento pessoal e intelectual. É nesse ínterim que o ato de ler torna-se um dos fatores primordiais em nossas vidas, pois leva-nos a pensar e a analisar a realidade em que vivemos e o ser que somos.
Entre a leitura e a percepção está o objeto: o livro. No nosso caso, tratemos da literatura infantil, cujo estatuto artístico carece, ainda, de reconhecimento tanto pelo seu valor estético, visto a preponderância de certa função didática que descaracteriza seu caráter ficcional, quanto do seu papel mediador de formação humana e literária. Por isso, mais do que um instrumento pedagógico, especialmente, de dominação ideológica, as obras infantis produzidas devem ser vistas pertencentes ao reduto seleto da Literatura, mediando a experimentação do mundo e auxiliando na ordenação das vivências na medida em que estas se realizam para as crianças.
A escritora Ana Maria Machado, no seu Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), mostra como a leitura dos clássicos, especialmente os infantis, pode proporcionar descobertas e nos renovar positivamente. A autora ainda ressalta que a leitura deles é um direito, não um dever imposto “por meio de um sistema de forçar a ler só para fazer prova” e, assim, “tentar criar gosto pela leitura” (MACHADO, 2002, p. 15); logo, a imersão de crianças e jovens no mundo dos livros deve ser feita da maneira mais natural possível, a fim de que se possa criar o gosto pelo ato da leitura sem profundos traumas.
Observamos, portanto, que o mundo da ficção da literatura infantil alimenta e estimula a inteligência da criança, tornando-a crítica e bem informada. O pequeno leitor começa a estabelecer parâmetros para fazer comparações e tentativas de soluções para os problemas que se lhes apresentam através de uma realidade criada, por meio da linguagem e que evoca a imaginação, para, posteriormente, lidar com várias situações contraditórias e inesperadas no plano da existência concreta e particular. Desse modo:
O uso da fantasia na literatura infantil é mais um recurso de adequação do texto ao leitor (…) já que a criança compreende a vida pelo viés do imaginário. A partir da transfiguração da realidade pela imaginação, o livro infantil põe a criança em contato com o mundo e com todos os seus desdobramentos.
(AGUIAR, 2001, p.83).
A literatura infantil é pensamento e arte, é produção de sentidos e afetividade, além de suscitar experiências culturais e históricas, o que faz com que o indivíduo se reconheça enquanto tal e como ser social. O ato de ler, consequentemente, transforma-se numa forma de resistência a todo e qualquer tipo de manipulação, já que ela “exige um grau maior de consciência e atenção, uma participação efetiva do recebedor-leitor” (CUNHA, 2003, p. 47) para que este possa libertar-se pelo espírito.
Desta forma, também é vista como uma atividade de trocas mútuas, “não apenas como um recebimento ou um consumo passivo” (MACHADO, 2002, p. 21).
As referências e inferências, as seleções e relações são acionadas como recursos cognitivos que, aliados à imaginação, contribuirão para a consistência do repertório de experiências vividas, imaginadas e lidas pelo pequeno leitor, fazendo com que sua capacidade intelectual e leitora amadureça, permitindo a aprendizagem de diversas manifestações da linguagem, e o oriente nos posicionamentos e tomadas de consciência vindouros:
A convivência com poemas, narrativas ou textos dramáticos, além da ilustração ou das imagens visuais, que passaram a integrar necessariamente o livro de literatura infantil, faz com que a criança desenvolva habilidades de manuseio, de entendimento e de relação entre linguagens diversas. Muito mais do que isso. Ela forma as referências simbólicas, afetivas e de pensamento que irão permanecer na memória e influenciar pensamentos futuros.
(COSTA, 2007, p.27).
A criação literária infantil desencadeia múltiplas visões em razão da percepção particular do universo representado e do trato simbólico que se dá à(s) linguagem(ns) – na interação entre texto, ilustração e projeto gráfico –, concedendo à criança o preenchimento das lacunas derivadas de sua diminuta experiência existencial e o alargamento do seu domínio linguístico e de suas faculdades intelectuais.
Assim, a literatura infantil transforma-se num meio de acesso ao real e de emancipação do pequeno indivíduo, pois este começa a adquirir autonomia cada vez que persevera em suas leituras, já que a obra literária permite leituras plurais por meio do seu caráter simbólico. Por outro lado, tal perseverança só se dará com o prazer do aprendizado da leitura, “exercendo plenamente essa extraordinária característica cerebral da espécie humana” (MACHADO, 2002, p. 100) e nutrindo a memória pessoal e coletiva:
Criança tem o olhar aberto para o poético na medida em que ela tem o olhar exercitado para brincar. Mas precisa ser incentivada a brincar com a língua por meio de muitos jogos de palavras: ditados populares, cantigas de todo tipo, de roda, de ninar, parlendas, quadrinhas, os poemas em si. Também ajuda viver em um ambiente em que impere a poesia, ter tido liberdade para olhar o mundo de modo detido, ainda que seu tempo de concentração seja diferente daquele do adulto, demorado e com minúcia. Afinal, criança é poeta quando em seus achados cotidianos desvenda um ângulo diferente para ver as coisas e para expressá-las verbalmente.
(CARPINEJAR, 2008, p. 7).
É notória, na citação acima, uma espécie de comunhão baseada no prazer, no interesse e na liberdade de interpretação e expressão da criança, que manuseia o livro como seu “brinquedo”. Dessa maneira é que se forma, efetivamente, um leitor; mas, para isso, é necessário que a criança disponha de tempo e espaço para interagir com seu “brinquedo”.
Através da ludicidade e do prazer da leitura, ela adquire informações e tende a construir, pouco a pouco, sua visão de mundo acerca dos temas humanos: quem somos, as utopias individuais e coletivas, os caminhos do crescimento, o bem e o mal, o tempo e o efêmero, questões éticas, o envelhecimento, entre outros.
A partir de então, leituras como O médico e o monstro, de Robert Luis Stevenson, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, A bolsa amarela, de Lygia Bojunga, Peter Pan, de James M. Barrie, por exemplo, apresentam os contrastes do mundo real – como também do homem – e precisam ter espaço nas vivências de leituras dos jovens, haja vista se revelarem um precioso acervo para questionamentos, inerentes ao ser humano, e sua reflexão.
Exemplo disto seria a boneca Emília, personagem do Sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato, que surpreende o Visconde de Sabugosa com seus pontos de interrogações quando da escrita das Memórias da Marquesa de Rabicó: “Bote um ponto de interrogação; ou antes, bote vários pontos de interrogação. Bote seis. (…) não vês que estou indecisa interrogando-me a mim mesma?” (LOBATO, 1962, p. 10).
A literatura infantil torna-se, portanto, o ponto de partida para a construção da identidade do pequeno leitor como um amplo fenômeno cultural, histórico, filosófico e literário. Aquele é provocado, instigado e motivado a conhecer, indagar, responder, formular em um diálogo constante com seu restrito conhecimento de mundo. A leitura, consequentemente, direciona o indivíduo em formação para a ação cotidiana e para iniciar seu estar no mundo.
Neste ínterim, a criança passa também pela descoberta da sua interioridade e, conforme seu amadurecimento, começa a fazer a distinção com o universo externo ao seu particular.
BIBLIOGRAFIA CITADA
- AGUIAR, Vera Teixeira de (Org.) Era uma vez… na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001.
- CARPINEJAR, Fabrício. A infinita infância das palavras. Revista da Cultura. São Paulo, n. 08, p. 07-08, mar. 2008.
- COSTA, Marta Morais da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: IBPEX, 2007.
- CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria e prática. São Paulo: Ática, 2003.
- LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1962.
- MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
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