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Nos debates voltados para o ensino de literatura, muito se discute sobre certa “manutenção” da historiografia literária e o quão ela poderia estar obsoleta em relação à exploração do texto literário em sala de aula.

A partir dali, é destacado que o que ainda se observa no ensino de literatura é o professor recorrendo às sínteses dos períodos literários e à contextualização das obras numa sequência temporal linear; em síntese, a função prática da história da literatura não diminuiu. A disciplina em questão parece ainda fundamental, pois se mostra difícil dispensar por inteiro um ensino pautado na periodização de obras e escritores, situados em recortes temporais e ligados a movimentos estéticos, apesar do que se lê, por exemplo, nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, disponibilizadas no site do MEC: “não se deve sobrecarregar o aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc., como até hoje tem ocorrido, apesar de os PCN, […] alertarem para o caráter secundário de tais conteúdos” (2006, p. 54).

Esta metodologia, centrada na contextualização das obras em períodos literários, também é alvo de críticas por parte de muitos professores, que consideram defasado esse modo de ensinar literatura. Mas o fato é: não se deve romper com a história da literatura.

Olhando por outro ângulo, o que poderia ser criticado é a forma como ela é tratada em sala de aula e a desvalorização dos conteúdos relacionados às ciências humanas, ou seja, “ é preciso destacar o fato de que as grandes obras de história literária não podem ser responsabilizadas pela má aplicação que delas se faz, e muito menos pela miséria geral do ensino médio no que toca às humanidades” (FRANCHETTI, 2002, p. 253-254). Conforme também se nota no seguinte trecho das Orientações…, de 2006:

Constata-se, de maneira geral, na passagem do ensino fundamental para o ensino médio, um declínio da experiência de leitura de textos ficcionais, seja de livros da Literatura infanto-juvenil, seja de alguns poucos autores representativos da Literatura brasileira selecionados, que aos poucos cede lugar à história da Literatura e seus estilos. Percebe-se que a Literatura assim focalizada – o que se verifica, sobretudo, em grande parte dos manuais didáticos do ensino médio – prescinde da experiência plena de leitura do texto literário pelo leitor. No lugar dessa experiência estética, ocorre a fragmentação de trechos de obras ou poemas isolados, considerados exemplares de determinados estilos, prática que se revela um dos mais graves problemas ainda hoje recorrentes.

(BRASIL, 2006, p. 63)

Infere-se, então, que a prática docente se limita a reproduzir a “história da literatura” para os alunos em vez de ensinar a própria literatura, tornando-se, assim, uma “prática viciada” entre alguns professores reduzir o ensino de tal conteúdo à abordagem dos períodos literários e ao enquadramento de obras e autores nesses períodos; logo, o que se aponta é o modo como o texto literário, bem como a historiografia que dele se ocupa, é trabalhado em sala de aula, já que não se propicia a “experiência plena de leitura do texto literário”.

No entanto, vale apontar que a história literária não impede que se faça a leitura dos textos, pelo contrário, ela deve facilitar a seleção de quais obras ler ou sobre quais falar. Infelizmente, o professor se vê pressionado por uma vasta lista de obras para contemplar, ou pelo seu vasto programa panorâmico, e sente-se compelido a cobrir a linha do tempo da literatura, e os alunos, já desestimulados, se veem com dificuldade para entender e contextualizar, estética e historicamente, tantas obras “antigas”, apenas citadas ou vistas superficialmente.

O mesmo cenário é verificado no âmbito do ensino superior, na formação de pesquisadores e docentes nos cursos de Letras, em que o conteúdo e as ementas das disciplinas que compreendem a Literatura Brasileira configuram-se ainda de maneira historiográfica, com base nas principais historiografias produzidas – Veríssimo (1916), Coutinho (1955), Candido (1959), Bosi (1970), entre outros. Assim, o que muitas vezes é visto como um ensino rígido, estagnado, na verdade, pode apresentar-se como uma perspectiva educacional ainda necessária para a formação do futuro docente/pesquisador e para a geração de leitores dessas obras historiográficas, analisadas e apreendidas em um processo formativo em constante reflexão.

Além disto, sobretudo no âmbito acadêmico, a historiografia literária constitui-se como um patrimônio representativo da cultura a ser valorizado e mantido, uma configuração orgânica e dinâmica que, subsidiada pela crítica e pela teoria literárias, deve ser tomada como objeto de investigação, que “fornece como que um mapa do tempo, sem o qual será impossível mover-se com um mínimo de proficiência no domínio dos estudos literários” (SOUZA, 2007, p. 152-153), além de ter como “uma das [suas] funções primordiais […] atender ao público estudantil em suas necessidades didáticas” (MALLARD, 1995, p. 66), e, para tal, a literatura é tomada como “fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade” (CANDIDO, 1995, p. 243), bem como na sua historicidade.

A permanente revisão dessa historiografia é imprescindível, portanto, já que ela permanece como alicerce para o ensino de literatura e para a formação do estudante, tanto como indivíduo quanto como profissional. Reconhecemos as vulnerabilidades e as limitações da referida disciplina – “noção sumária e grosseira da literatura”, “tendência para a linearidade evolucionista”, a concepção de contexto como “fator determinante” da literatura, entre outros –, mas se tornaria esvaziada e sem eixo a prática docente que não lançasse mão das configurações históricas, sociais e políticas das obras, que as eliminasse “do plano de estudos dos aspirantes a especialistas em literatura, com o que o acesso à literatura como objeto de reflexão e pesquisas se faria pela via única da teoria da literatura, concebida como construção conceitual alheia a qualquer referencial histórico” (SOUZA, 2007, p. 151). Se assim fosse, o ensino de literatura se tornaria “desastroso”, tendendo ao fracasso, visto que sempre haveria a necessidade de “uma constante remissão à contínua reconfiguração desse objeto [objeto cultural chamado literatura] segundo o decurso do tempo, isto é, conforme o ritmo da história” (SOUZA, 2007, p. 151).
Sim: a história da literatura mantém seu lugar tanto nos estudos literários quanto no ensino, especialmente porque – e estamos cientes disso – a “Literatura […] é um campo riquíssimo para investigações históricas realizadas pelos estudantes, estimulados e orientados pelo professor, permitindo reencontrar o mundo sob a ótica do escritor de cada época e contexto cultural” (BRASIL, 2002, p.19), contribuindo, dessa forma, para o cruzamento das fronteiras do conhecimento e para a promoção das competências humanas mais amplas nos estudantes.

Por mais conservadora que pareça aqui essa defesa, o que pretende, na verdade, é afirmar que não devemos subtrair da referida disciplina a relevância da sua atuação no ensino e na pesquisa, que ganham em profundidade com ela, visto que um dos méritos da historiografia literária consiste em provocar o interesse de outros estudos que venham a preencher as suas lacunas. Os anacronismos e o “aqui e agora” negligenciam o que da linha histórica da literatura é recuperável na atualidade e que pode levar também ao entendimento do presente. Em outras palavras, trabalhar com a historiografia literária “não se trata de apresentar as obras da literatura no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que essas surgiram, o tempo que as conhece, isto é, o nosso” (BENJAMIN, 1994, p. 97), dando a conhecer e preservando, assim, não somente a história produzida pelo homem, mas o próprio homem. É inegável que a história literária continua servindo como uma espécie de dicionário, de material de consulta de datas e marcos literários, ou como um mero apêndice didático.

Porém, o que não se vê é que, com o auxílio dela, a literatura responsabiliza-se em permitir que reflitamos acerca das concepções e das representações construídas até então sobre o nosso povo, nossa cultura, dos principais traços que formam a nossa sociedade e do nosso estar no mundo. A literatura não é apenas ficção. Ela também é memória, conhecimento, história…

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. História da literatura e Ciência da Literatura. In: ZAIDAN, Michel (Org.) Walter Benjamin. Recife: UFPE, 1994.

BRASIL. PCN+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Vol. Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2002.

_______. Orientações curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica, 2006.

CANDIDO, Antonio. “Direito à Literatura”. In: _______________. Vários Escritos. 3a. ed. (revista e ampliada). Livraria Duas Cidades: São Paulo, 1995.

FRANCHETTI, Paulo. História literária: um gênero em crise. Semear: Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses, Rio de Janeiro, n. 7, p. 247-264, 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2016.

MALLARD, Letícia. Nelson Werneck Sodré: a ruptura e o reflexo. In: MALLARD, Letícia et alli. História da Literatura: ensaios. Ed. da UNICAMP: Campinas, 1995.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Introdução à Historiografia da Literatura Brasileira. Eduerj: Rio de Janeiro, 2007.

Juliane Elesbão
Colunista : Revista Entre Poetas e Poesias | Website | + posts

Blogger, Andarilha na Literatura e Doutora em Letras. Colunista na Revista Entre Poetas e Poesias.

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